Possíveis Paisagens: Memória, Sensações e Cor

Detalhe da fachada do MARGS no período da exposição Possíveis Paisagens. Porto Alegre, 2006.

Marcel Proust, no seu livro "Em Busca do Tempo Perdido", depois de adulto, ao voltar à sua casa de infância, percebe que o espaço e os objetos como a escada, as cadeiras a cama, não eram assim tão grandes. Eram normais mas, em sua memória, a sensação que lhe vinha era de amplidão. A desproporção que  tanto o assustava na época se desvaneceu afinal, as coisas eram  reais e proporcionais. Também o espaço fisico, ao sair nos campos, era de paisagens imensas.

Um ano antes da minha exposição no Margs, encontrei 3 desenhos coloridos a lápis de quando eu tinha 4 anos. A emoção tomou conta de mim e fiquei muito tempo observando todos os elementos que compunham aquelas pequenas "paisagens" povoadas de estranhos símbolos e dos mais variados tamanhos e de tão ricas sensações. Percebi que a criança está relativamente em desvantagem frente a tudo que habita seu entorno. 
Assim surgiu o tema POSSÍVEIS PAISAGENS. (Nome dado pelo artista e crítico de Arte Paulo Gomes) 
A cor é o elemento principal, cores em profusão que também permeiam o mundo que deixamos em nossa infância remota, onde tudo é colorido. A inocência é colorida.

"Tudo o que devo dizer da casa de minha infância, é justamente o que preciso para me colocar em situação de onirismo, para me situar no limiar de um devaneio em que vou repousar no meu passado." (BACHELARD, 1993)

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 32




LOU BORGHETTI - PINTURAS

É surpreendente comunicar-lhes que, em meio a tantas instalações e conceitos, ressurge alguém que ama. Que ama a pintura em sua forma mais singela e despretensiosa, elementar, espontânea. Sim, alguém ainda capaz de pegar em pincéis e, sobre a superfície do papel ou da tela, espalhar cores, criar tramas, construir texturas, inventar narrativas.

Há uma história que merece ser contada. Não é uma farsa, nem novela. Também não se trata de lírica invenção poética desmedida. A fala que se percebe e se ouve, que salta deste conjunto de diferentes estaturas e formatos, é a fala de gente igual a você. Você mesmo, aí, que está lendo este texto. Gente de carne e osso. Gente que sofre e ri. Que se encanta e desata. Que é artista por destino.

Arte (ou destino) não é coisa lá de se achar estranho. Arte não é coisa de gênio. Arte que vale a pena ser vista e vivida é para impregnar nosso cotidiano, invadir nossa casa, habitar o meu, o seu olhar. Há algo melhor para resolver este claro enigma da existência do que acrescentar beleza e não banalidade ao mundo? Se a função da vida é mais vida, Lou acrescenta pitadas, pinceladas, bocadas de tinta aos aromas e sabores de nossa contemplação.

No seu poema Os Sapos, lido na Semana de Arte Moderna de 22, Manuel Bandeira já desancava os parnasianos. Ele estava farto do lirismo comedido, da prosa do mercado, das artimanhas e invencionices dos textos críticos. Ele queria falar de coisas concretas: bons poemas, boas pinturas, boa música. O Brasil se inventava a si mesmo. Adentrávamos os anos 30 e produzíamos excelência na arquitetura, na literatura de caráter regionalista. As pessoas não eram produto da sociedade de espetáculo.

Volto ao passado, a uma época em que se criava sem fanfarronice e sem o olho gordo voltado à mídia. O artista tinha de se provar por seu talento. Por sua entrega. Por seu amor esclarecido a si mesmo e às coisas brasileiras, entranhadas em sua formação.

Lou exalta luzes que trazem bocadinhos do Brasil: memórias, cadeiras em que sentamos, flores que aspiramos, enevoamento que não ousamos dispersar. Tudo se embebe em olhar e tinta. Tudo se dissolve em gesto e corpo. A artista retira sua pele, sua roupa mais íntima e, nua, sem pudor de entrega, se envolve no linho da tela, no algodão ou celulose do papel.

Lou, assim, parece emergir da memória do tempo. [É bom que estejamos despidos de quaisquer sentimentos tolos ao entrarmos no MARGS.] Sua pintura é bruta. Real. Presente. Não há nenhum lirismo desmedido. Ela faz da arte de manchar, com cores, superfícies antes intactas de branco, uma marca. Ouvimos o farfalhar das pinceladas, o marulhar das tintas. Há matéria viva, úmida, impossível de secar pela ação do tempo. Lou parece habitar, mais que às margens do Guaíba, à margem do tempo. E, no entanto, por paradoxo, sua contemporaneidade é radical. Ela não faz concessões. Ela faz pintura.


Leonel Kaz


O texto escrito por Paulo Gomes, pode ser conferido clicando AQUI.











Múltiplos de 1: Desdobramento fotográfico




Na exposição Múltiplos de 1, as imagens fotográfica foram feitas a partir de apropriações de arte urbana e superfícies. O uso invertido e espelhado das imagens em módulos criam uma linguagem que vai para além da fotografia. Tudo se multiplica e se divide, tudo é um ou MÚLTIPLOS DE UM.
Fotografo como uma pintora. Percebo “pinturas” nas paredes, muros, madeiras de casas antigas, ferrugem, troncos de árvores e raízes. O detalhe está próximo e presente, vivo e colorido. Resgato e me aproprio destes fragmentos de cores, contrastes, texturas oxidadas, compostas e decompostas. A beleza está onde aparentemente não há beleza.
A ação do tempo é sutil, não se percebe, mas segue deixando marcas. São essas marcas, testemunhas do tempo em andamento, que busco captar. A alquimia do tempo na matéria original.
[...]
São abstrações do nosso cotidiano: o mistério do tempo em ação. Sempre que estou capturando imagens coloridas e corroídas, percebo, além das formas e cores, a dimensão humana, a ação inexorável do tempo. Tanto faz estar o navio aqui ou em qualquer outro lugar, seu destino seria o mesmo, parte de um processo de finitude, envelhecimento e morte. Na memória depositamos a captura de um momento. Através dela deslocamos o tempo. Ali existe história, abandono, segredos e silêncio. A imagem é desconstruída e reconstruída infinitamente. O visível e a transcendência, o passado que se interpõe ao presente e projeta um outro futuro. 




Lou Borghetti e Roque Jacoby, Secretário da Cultura na época
In memoriam: Alex Vallauri

Multiples of 1
Multiples of one

Múltiplos de 1, múltiplas de uma

Elizethe Borghetti pinta, passeia, dá aulas, viaja, fotografa.

Elizethe Borghetti não para, não dá tempo ao tempo.

Em viagem, ou não, ela registra o tempo transformado em textura. Alguém já disse que o tempo tem assinatura nos muros, portas e paredes pelos caminhos sejam quais forem? Bom, então está dito e fotografado.
Elizethe é mais veloz que o tempo, ou será que ela desobedece ao tempo? Múltiplas de uma artista, ela fez das marcas estáticas do tempo, movimentados, quase sonoros Múltiplos de 1.

Sabe-se lá o que ela fez! E hoje, agora, para que pintar se já estava “pintado” aquilo que ela capturou, e multiplicou?

Amanhã ela vai pintar, vai passear, fotografar. E não vai depender do tempo!

Luiz Eduardo Achutti
(fotógrafo, antropólogo e professor do Instituto de Artes da UFRGS)